terça-feira, 14 de setembro de 2010

Wagner Ferraz: Lonesome cowboy

Foto: Mario Del Curto

Precisa ser muito macho

O palco estava todo escuro, o chão preto parecia asfalto, não havia cortinas no fundo, o palco está demarcado como se fosse uma grande caixa de madeira (preta) com mais ou menos 30 cm de altura. Isso levava a compreender que o espetáculo aconteceria dentro desta caixa, mas ao mesmo tempo sobrava um corredor em torno desta que me deixou curioso sobre o que poderia acontecer. Os intérpretes já estavam em cena, o figurino me lembrava algo “militar”, movimentavam-se lentamente e muito bem, havia controle, explicito, dos movimentos que eram extremamente conduzidos. Não havia transição entre diferentes dinâmicas de movimento, mas sim um grande cuidado ao colocar e retirar os pés, e mãos em alguns momentos, do chão.

A iluminação inicialmente me lembrava às luzes de um campo de futebol a noite, fortes e brancas em contrates com o chão preto que me deixou curioso para saber de que material aquilo era feito. Fiquei pensando na foto de divulgação deste espetáculo na revista do POA em Cena, pois nela podia ver um chão todo riscado, imaginei que em algum momento haveria um intervalo e seria colocado um linóleo com muitos riscos pintados.

Para minha surpresa, o linóleo que imaginei não existia, mas sim o chão preto que podia ser “riscado” com a movimentação dos bailarinos raspando no solo. Nossa, naquele momento me senti em êxtase, fiquei encantado com a capacidade de criar a cena através da relação dos corpos com o chão. Então, compreendi por qual motivo os movimentos inicias eram realizados com tanto controle e lentamente, assim evitava-se de “riscar” o chão antes do momento planejado. Muito inteligente!!! Admiro trabalhos que, como costumo dizer, consegue “enganar” o público para poder presentear com uma interessante surpresa.

Conforme os intérpretes corriam, caminhavam, rastejavam, rolavam, se arrastavam pelo chão, desenhos eram traçados no solo mostrando caminhos, linhas, círculos, cruzamentos que formavam um mapa onde estava sendo estrategicamente marcados os caminhos de ataque em uma guerra. Mas ao mesmo tempo, passei a perceber o que está descrito na sinopse do espetáculo, e li as marcas no solo como “machos marcando seu território”. Eram apenas 5 intérpretes em cena, todos homens.

Todos tiram suas camisas se dividem no palco como se fossem dois times, inicia-se um jogo que não consegui entender, mas podia ver clara a disputa, os vencedores, os perdedores, as noções de regras estabelecidas entre eles, as comemorações que resultavam sempre em muitos abraços que são comuns se ver entre vencedores de um time. Mas se abraçavam muitas vezes, e ficavam com os corpos colados...

A luz muda fica amarela, parece que todos se desentendem no jogo, se movimentam, se posicionam se dirigem uns aos outros como se fossem brigar, mas inicia-se uma seqüência de abraços, e o homem apresentado neste espetáculo começa a brincar. O chão vai sendo redesenhado muitas vezes, e o território sendo marcado...

Depois de saídas e entradas em cena onde trocam de roupas e apresentam outras noções de homem através do visual e de ações, percebo que muitos clichês de masculinidade foram apresentados. O óbvio estava presente, eram homens em determinadas situações se apresentando como um macho comumente se comporta, e o que pode levar a deixar dúvida de sua masculinidade. Percebi como clichês...

Falar de algo na cena da dança se utilizando de clichês é extremamente complexo, pois se cai no que já foi realizado muitas vezes por outros coreógrafos, ou se cria algo que conduz a visão do espectador para olhar para algo comum com outro olhar, nesse caso o olhar do criador.

Philippe Saire conseguiu em Lonesome cowboy lembrar e apresentar ações cotidianas ou não da cultura masculina de uma forma difícil de explicar, pois é um resultado dançado e não explicado oralmente. Mesmo assim, vou voltar ao meu tempo de bailarino e fazer o exercício que eu fazia, de tentar explicar em palavras o que eu dançava. Sairé, como eu estava dizendo, reproduzia atividades comuns em cena, porém não percebi simplesmente que algumas imagens foram jogadas na cena através dos corpos dos bailarinos, tudo foi muito bem estruturado e transformado em coreografia. Mas, ao mesmo tempo, essas imagens colocadas em cena não foram extremamente alteradas para se poder dizer que “um movimento cotidiano virou dança”. O coreógrafo se utilizou muito bem dos clichês.

Confesso que fiquei confuso, mas também posso dizer que foi uma encantadora confusão, algo muito difícil de coreografar, pois os movimentos que suponho que foram resultantes da pesquisa de movimento estavam na cena, a coreografia foi desenvolvida através desses movimentos. Ok! Tudo bem, porém mais uma vez o coreógrafo conseguiu “me pegar”, me deixando várias dúvidas que me permitiam fazer minhas leituras sobre a obra. Para mim isso é coreografar!!! Plantar dúvidas que ao mesmo tempo são certezas, mas não são explicitas e nos permitem fazer diferentes leituras.

Onde estava a coreografia? Onde estavam os movimentos pesquisados? Não conseguia separar um do outro, e isso permite perceber que a obra não foi produzida em 2 ou 3 dias, mas durante um “longo” processo de pesquisa e experimentação.

Os homens/intérpretes se beijam, ficam sem camisa, usam saia (kilt), bebem cerveja, se enfrentam, brigam, e o território vai sendo demarcado no solo com seus movimentos. Até o momento em que todo aquele material que cobre o chão é espalhado novamente deixando o solo liso e negro. Mas ao final todo o material preto que recobre o chão e permite que as marcas sejam feitas é retirado pelos intérpretes ficando apenas o linóleo que estava escondido abaixo.

Dois homens brigam até a exaustão com uma linda movimentação! Caem no chão e pode-se ver a corpos pulsando com a respiração ofegante. Quem já dançou pode imaginar que este espetáculo exigiu muito deles, exigiu força, como dizem “precisa ser muito macho” apesar de não gostar muito dessa frase.

Então, ao final do espetáculo entre as dúvidas que me restaram, pois muitas me foram respondidas durante a apresentação, ficou: Será que o coreógrafo exigiu tanto dos intérpretes quanto a sociedade exigem dos homens para corresponderem aos modelos representacionais de masculinidade?

Seja lá o que for que tenha movido todos os envolvidos nessa criação, o que se pode perceber na cena é um trabalho de qualidade, com muitas informações, dedicação e uma dança que me faz querer continuar acreditando na arte!

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Wagner Ferraz: Especialista em Gestão Cultural e Graduado em Dança; Editor da Informe C3 Revista Digital; Coordenador do Processo C3 Grupo de Pesquisa (www.processoc3.com); Coordenador de Projetos e Pesquisa da Terpsí Teatro de Dança.

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